segunda-feira, 21 de julho de 2008

A Sãozinha no Te Deum...

A Sãozinha, velha amiga do Liceu, que os meus leitores ainda não conhecem, esteve recentemente em Lisboa. Confesso que ando a evitar a Sãozinha!... Não que esteja cansado, que ideia!... A Sãozinha supera todos os tédios. Mas que querem? um homem tem por vezes destas quebras!... Por isso, apenas à terceira, a Sãozinha me convenceu : -

- "Tens que vir, esta não a podes perder!"! - referia-se a Sãozinha, naturalmente, a uma das cenas picarescas, tão pródigas na provinciana cidade, onde a minha amiga exerce, com mestria, seu mister de zeladora da harmonia social, no culto das virtudes domésticas e no exemplo fecundo dedicação à causa pública e aos valores perenes da tradição e do respeito...

A Sãozinha sabe que não resisto à graça da sua boquinha "rosa, rosae",declinando, na cama, quadros vivos da nossa cidade natal... em fraldas!.. Por isso, à terceira, fui!..

Claro que antes da estória paguei o tributo. A Sãozinha estava famélica. E foi logo ali, mal transposta a porta, que o ataque se iniciou, fulminante. Uma autêntica incursão no Iraque: não ficou sobre mim pedra sobre pedra. O que vale é que Sãozinha é expert e aplicada. Não tive que me mexer - fui apenas pasto das suas chamas!...

Como sempre, apaziguada a fome da carne, a Sãozinha quis mimar-me. A tarde estava quente e, por isso, ficamo-nos por meloa perfumada com umas gotas de Porto, como a Sãozinha fez questão. Veio então a estória...

Por umas cartas que a Providência quisera, em boa hora, depor em suas sábias mãos, a Sãozinha descobrira que um vulto da 1ª República, nosso conterrâneo, objecto de seus estudos, fora não um ateu e herege carbonário, como todos julgavam, mas um devoto filho da santa madre igreja...

Imaginem o júbilo daquelas almas cristãs!... Impunha-se, como se compreende, celebração condigna. A reposição da verdade histórica assim o exigia. Um solene Te Deum, com o bispo e todo o cabido foi cantado... Para glória nos céus, consolo das almas pecadoras e esperança de conversação dos "novos" ateus!...

Dispenso-me entrar na descrição minuciosa da cerimónia, que a Sãozinha, solícita, quis que este ateu empedernido vivesse em todo o seu colorido e esplendor... Digo-vos apenas, à laia de remate, que o Presidente da Câmara chegou tarde à cerimónia. E, afogueado, por entre o sobreolho franzido do bispo e o pigarro mal contido do Governador Civil, se sentou no lugar reservado na Sé, junto à Sãozinha.

Então, por duas vezes o Presidente, na solenidade da cerimónia, bichanou ao ouvido da Sãozinha qualquer coisa. Que ela, na sua impecável compostura, insistia em não perceber!...

Finalmente compreendeu:- "o cheque! tem o cheque?!", inquiria, angustiado, o Presidente, referindo-se, naturalmente, ao pagamento da cerimónia, uma iniciativa conjunta da Câmara e da instituição!...

Não me disse, de sua resposta, a Sãozinha!... Apenas comentou, num suspiro angelical:

- "Imagina tu, o burgesso, na devoção do Te Deum, a falar-me em cheques!... Como se eu não tivesse mais nada para me ralar - como, por exemplo, a tua ausência e a falta de um madrigal teu, meu Príncipe!..."

Não é mesmo um amor a Sãozinha?!...

11 comentários:

jrd disse...

Parece mesmo um amor de "Governadora Civil" ou equiparada.
Uma delícia de estória.

Unknown disse...

Imagino o que seria, se depois de mais de um século, viesse alguém [tipo Sãozinha...], descobrir, por estranas artes, que o meu trisavô, republicano e anticlerical, com práticas de carbonário, afinal... era o que a minha trisavó sempre quis: um devoto disfarçado...
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Acho que não suportaria tal surpresa!
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E acho que a Sãozinha queria, apenas, acreditar... e queria uma missa única, com a devoção do Te Deum, onde tu não poderias faltar [qual chamamento "carnal" do Céu, na Terra, corpórea hóstia... Ámen!].
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[Beijo para o Príncipe dos madrigais...]

ALeite disse...

Góstei. Manda sempre. Um aração kamarada.

José Pires F. disse...

Um conto, uma delicia.

Bom ritmo, escrita escorreita e imaginativa. Uma história bem contada.

Parabéns.

Maria Laura disse...

... e logo ali, imagino, apesar de não ter restado "pedra sobre pedra", te desdobraste na inspiração de um madrigal bem merecido... que a Sãozinha não é assim de se deitar fora, com essa fome toda... de afecto. :))

Adorei!!!

manhã disse...

a sãozinha é que sabe e presidentes há muitos!Boa!

dona tela disse...

Voltei!!

Já tinha saudades.

casa de passe disse...

o pilim é importante, isso nem se discute, mas uma amiga como a sãozinha, tem muito mais valor..


joão

Leonor disse...

já agora também li o outro texto
so por curiosidade.
bom. muito bom.
abraço

Eme disse...

malvado malvado tu acabas sempre por levar a melhor:tive de recuar no tempo para vir conhecer a tua sãozinha. e entendo o porquê de a apresentares noutra "ilha",não vá o farol tecê-las..

take seguinte...

mariam [Maria Martins] disse...

titeriteiro,
parabéns!
conseguiu uma coisa fantástica com a sua escrita criativa, que nós, leitores, sintamos um frenesim de leitura, descendo a correr cada linha, até ao remate final...de príncipes e madrigais! fica um "sabor" de "queremos mais"... não bastando isso , conseguiu transformar um "Te Deum laudamus" num desenxabido evento! rsrs
e sou católica!

fique bem,
volto amanhã

um grande sorriso :)

mariam