domingo, 13 de julho de 2008

Depois do Teatro, a Ceia – Cena II

Possuído pela inebriante paixão, como se fora um veneno doce, que tolhe a consciência e afasta quaisquer outros sentimentos que não sejam o deleite de mergulhar nas suas ondas, o ENCENADOR, frente ao espelho, maquinalmente, ajustou o smoking.

Olhou-se nos olhos e acendeu nos lábios o leve sorriso de ironia, que a si próprio dedica em ocasiões como aquela, em que sabendo-se embora senhor de si, não pode, contudo, deter os fios da corrente do destino e, por isso, o “sim” ou o “não” se jogam numa centelha de intuição, mais que num exercício deliberado de inteligência.

Não, não iria à faustosa ceia, que o MECENAS, no seu palacete recentemente restaurado, decidira organizar para seu gozo pessoal e em homenagem a toda a companhia. Claro que tinha boas razões para ir. ELAS lá estariam, requestadas, soberbas de charme e inteligência, dominadoras nesse palco sofisticado de mundaneidades e prazeres fugazes. Mas não iria...

Não lhe agradava, especialmente nessa noite de consagração, sentir-se refém do seu talento, escutar cumprimentos, brandir sorrisos, responder às perguntas imbecis dos jornalistas culturais, que certamente estariam em peso. Mas, sobretudo, preferia evitar o espectáculo do sorriso predador do MECENAS, cobrindo de elogios e atenções aquelas duas mulheres, alfa e ómega de seus êxtases. Se havia algum sucesso a comemorar deveriam ser apenas os três: qualquer intromissão seria perturbar o sopro divino do equilíbrio perfeito...

Não iria, pois!... Com um gesto brusco desfez o laço e libertou-se do smoking a caminho do seu recanto predilecto na biblioteca. O sangue, porém, continuava a latejar de inquietação. Bem sabia ele que o MECENAS as desejava tanto quanto ele próprio...

Sempre assim fora, nessa estranha relação entre os dois. Era amigos desde sempre. Oriundos de uma certa aristocracia arruinada da província, percorreram quase meio século de vida, adivinhando-se nos caminhos, nem sempre dóceis, trilhados por um e por outro. Fora assim no liceu, na faculdade, mais tarde em Paris, partilhando estudos, gostos, aventuras e mulheres, como se vida de cada um fosse réplica da vida do outro.

Melhor: como se, por um qualquer acidente do destino, a vida de cada um realizasse neles o mesmo percurso matricial!... Apenas o rosto e a profissão os distinguia. E, evidentemente, a ostentação da riqueza material. O sucesso empresarial fizera do MECENAS um homem prodigiosamente rico.

Buscava, em vão, o ENCENADOR, envolvido no turbilhão destes pensamentos, refrigério para o estado febril e para aguilhão do desejo, em sua imaginação exacerbada, que teimava em queimar-lhe a carne. Afastou, porém, as gotas de suor frio que, como orvalho matinal sobre pétalas, lhe ornavam a fronte e retirou, da estante, o LIVRO. Sempre o mesmo quando, como agora, a alma delirava e o corpo requeria o calor de outro corpo. Abriu, ao acaso, as páginas do “Fausto”, de Goethe e soletrou, intimamente, o seguinte diálogo:

Fausto:
-“Batem? Entre. Alguém me vem amofinar”.
Mefisto:
-“Sou eu!...”
Fausto (enfadado):
- “Entra lá!...”
Mefisto:
- "Ora assim é que é falar;acho que vamos dar-nos bem...”

Não teve mais tempo. A porta da entrada ribombava de impaciência...
(continua)

11 comentários:

**Viver a Alma** disse...

Titeriteiro:
Pois...
As histórias mesmo que sejam chamadas de ficção, repetem-se sempre! - até tudo se esgotar...neste caso específico entre mecenas e encena_DOR!
É essa "dor", seja qual for, venha de onde e de quem vier, mas nela se (re)conhece e sobretudo o faz erguer como um titan! - coisa própria de encenador, neste caso!
Quanto ao "triângulo" é coisa menor, por passageira, - tão só, porque não vem desde o tempo do liceu, penso eu - é mais ilustração da mente que, por fantasiosa, se mistura nas questões, a fim de criar maior desestabilização. A questão essencial aqui, está sómente nesse duo - que é vosso - ou melhor ainda, que é "seu"!
Que vença no "palco da vida", quem melhor saiba dirigir o seu próprio elenco.
E se fosse a si...passava por lá, pelo tal local da ceia. Afinal - para além de fazer parte do ritual - na ausência do director de actores, tudo fica mais vazio. Um olhar, um sorriso, um cumprimento, um obrigada a quem nos elogia - mesmo que custe ouvir de quem venha - é um acto que não deveria passar em vão.
Vá lá...mude a "cena" para a próxima actuação!

Peço desculpa destes meus comentários, mas eles raramente se vestem de cenas teatrais, ou de distorcidos retractos como na maioria dos blogs, onde se brinca ás escondidas consigo mesmos...o que acho perigoso - sou muito franca...ainda não percebi muito bem isso!
Eu habituei-me a olhar as situações de frente e a sentí-las pelo "outro lado" - aquele que se reveste da realidade em si mesma, quer teclando, conversando, ou olhando, saindo dessa maya/ilusão, de matéria visível, palpável - aquele lado, cuja visão, permite entender bem melhor as situações e/ou pessoas que se cruzam no nosso caminho e outros porquês?! É que as vicissitudes, provenientes da mente, que é inteligente, subtilmente ardilosa, e na mesma dimensão apelativa, confunde e des(centra)qualquer um/a...criando assim, estados de espírito que nunca se pensaria viver...ou imaginar sequer algum dia....

Peço desculpa pelo lençol, mas só assim me compreenderá melhor - se é que isso possa ter algum interesse?!
Fique bem
Palmas e Bravoooo!

Mariz

Maria Laura disse...

Temos concorrência... :) E uma insinuação diabólica na trama. Estou a gostar...

jrd disse...

Manda a prudência que quando se compete com um qualquer mecenas, sejam devidamente avaliados os factores que extravasam o campo dos afectos.
Boa semana

Mar Arável disse...

aBRE O PANO

NÃO EXISTE PANO

O TEMPO PASSA

bem-vindo ao meu mar

Ant disse...

obrigado pelo convite.
encenar a dor?
Pode até ser um bom exercício.
Desaconselhável, claro. Ou não...

Abraço

Eme disse...

Ele promete.
Mas aposto que nao é boa peça.

vai á porta

Take III

Unknown disse...

Obrigada pela persistência no convite.
.
Presumo que não chegaria já ter passado por aqui, ter lido com atenção as duas cenas, sem deixar um comentário...
.
Não seria o teatro que me faria voltar... Mas, sim, esta figura do encenador, que ao encenar a dor no palco, encena a sua própria dor...[mas, sem o mesmo rigor, sem o fingimento do actor... por isso, é verdadeira a dor, na solidão do "autor"...].
.
[Beijo de aguardo a próxima cena...]

Tinta Azul disse...

Pronta para o 3º acto.
Actua encena_dor.
Actua não...as tuas [alfa e ómega].
:)

hfm disse...

Hei-de voltar.

Licínia Quitério disse...

Obrigada pelas visitas. Fico à espera de novas cenas.

Um beijinho.

mdsol disse...

:)