sábado, 26 de julho de 2008

Eleições que foram...

Não te esqueças de votar no Domingo...” – soltas, inesperada, do outro lado do telefone, na tua voz aveludada, entre o sobressalto da emoção e o riso irónico...

- “Ah, és tu, Maria Adelaide. Não esquecerei. Celebraremos, de novo, juntos “a minha derrota?!”... – sorrio, com mal disfarçada ternura, bem sabendo o que ditava a tua preocupação cívica.

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Era, assim, noutros tempos. Antes de, em lucidez determinada, teres, Maria Adelaide, colocado ponto final na nossa relação sentimental. Marido e amante eram as duas faces da mesma moeda. Por isso, a tua emancipação pressupunha a “morte” dos dois.

Mas antes, quando tu saltavas de margem para margem, quando o João, teu marido, se afadigava em ambições políticas e, eu próprio, em campo oposto, me expunha na luta política, balançavas tu entre o dever de esposa e o voto do coração. E, prodigiosa, inventaste, então, a fórmula exacta: “celebrar a minha derrota”. O meu campo, ainda que ganhasse, nunca ganharia. A minha vitória seria, pois, a celebração contigo. E o João, teu marido, ganharia, claro, perdendo-(te) um pouco mais...

E celebrávamos, então. Abrias o champanhe, acolhias-me, fremente, no apartamento da praia, em ritual de transgressão. Palpitava o desejo no brilho do olhar, no teu riso nervoso e, como gazela ferida, expunhas o gozo de beber comigo o champanhe de teu marido. Impúdica e excessiva, sempre. Como se a entrega do corpo fosse catarse da alma. Em ultraje às convenções...


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Acordei, com a tua gargalhada:

- “Não! O champanhe esgotou, bem sabes: - dizes, carregando o subentendido. - “E o Pedro navega nas tuas águas. A tua derrota é também a sua derrota”, - acrescentas, num vago sorriso.

Vi sinceridade na tua voz. Terias acertado, finalmente?!.... Depois do teu divórcio, uma ou duas experiências de que saíste magoada. E isso doía-me.

Tremo por ti Maria Adelaide!... Oxalá.

- “Então o Pedro só pode ser bom rapaz!...”- gracejei.

Surpreendendo-me com a minha sinceridade:

- “Sou feliz com a tua felicidade, bem sabes!” – e, em íntimo temor: - “E este te telefonema, Maria Adelaide? Será que não “precisas” de falar comigo?!...”

Que não. Que está tudo bem. Que gostas de dar aulas e que o Pedro é carinhoso. E o teu filho gosta dele. São dois compinchas...

Senti a tua voz embargada:

- “Um dia destes falamos...” - disseste, bem sabendo tu e eu que “um dia destes” não tem prazo, nem horizonte...

- “Claro, Maria Adelaide, claro que falaremos. Sempre!... Até lá, procuremos comemorar as nossas derrotas”... – acrescentei, em amarga ironia...

Ficamos, assim, em silêncio. Minutos, de séculos. Depois, ambos recompostos, falamos de tudo e de nada. Dos amigos comuns. Das velhas e novas amizades. Do quotidiano. Inquiriste. Disse o que podia...

Do outro lado, o veludo da tua voz. Excitada. Quente. Acolhedora:

- “Tenho que ir! Cuida-te...” - e, num assomo de provocação, que tanto cultivavas: - “Fica sabendo que, desta vez, vou votar no “teu” partido! O Pedro merece...” .

Despedes-te numa gargalhada...

Que posso dizer-te, Maria Adelaide?!... Que és sempre bem vinda...

8 comentários:

Leonor disse...

é um texto excelente. na forma e no conteudo.escrito por um homem a "coisa" é diferente.menos piegas.
abraço

mdsol disse...

:)

Mel de Carvalho disse...

Belíssimo texto. Um olhar títere sobre o ontem que ainda é hoje e, quem sabe, amanhã ...

Parabéns pela escrita, escorreita e lúcida.

Cumprimentos
Mel

Unknown disse...

Chego aqui e "perco-me" no(s) sentido(s) do primeiro comentário: "escrito por um homem a coisa é menos piegas?"
De que ponto de vista? Do encenador? Da Adelaide?... Dos leitores? Das leitoras?
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As despedidas sempre me pareceram piegas... por vezes, menos excessivas, mas sim, piegas... e então? :)
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Depois, a Adelaide alguma vez terá votado no partido do marido?
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Alguma vez terá amado o marido?
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Mas, o que tudo indica, é que a Adelaide nunca te amou, encenador...
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E tu, também, nunca a amaste. Falas em ternura... falas em desejo... falas em preocupação...
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Finalmente, Adelaide descobriu a verdadeira moeda, não importa para que lado tomba ? cara ou coroa ?... é a mesma! e tem um único nome... que não é mais o teu...
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Adelaide, finalmente, emancipou-se: matou marido e amante. Talvez... quem sabe, tenha descoberto o amor.
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Se assim foi, que parece ter sido, Adelaide não voltará a ligar... a procurar... e o final é triste e não deixa de poder ser tão piegas como qualquer outra despedida...
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Lembrar-te-ás da Adelaide em todos os dias de eleições... cada vez menos... os traços do seu rosto serão uma mancha que o tempo apagará... porque não existirão fotografias para relembrar encontros furtivos...
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Uma coisa também parece certa, o teu partido e o do Pedro [e da Adelaide] continuarão a não ganhar... O João beberá o champanhe com os de sempre e outros que se lhes juntarão, infelizmente...
...
[Beijo de quem não tem jeito para despedidas, mas também já "encenou" algumas...]

P.S.: Adorei ler este conto!...

jrd disse...

Excelente1 Temos escritor.
Curiosamente a Ma. Adelaide evoluiu ideologicamente, nem tudo se perdeu...

Maria Laura disse...

Uma dose de boa escrita, outra de alguma nostalgia e eis reunidos os ingredientes. Interessante e talvez até muito coerente, esse percurso da Maria Adelaide!

dona tela disse...

Assim é que eu gosto. Bons programas.

As minhas cordiais saudações.

mariam [Maria Martins] disse...

titeriteiro,

desci correndo cada frase, fui sentindo um misto de sensações.
Primeiro Maria Adelaide, estava a dar-me nervos, p'la postura, leviana.
Depois, o Encenador, p'la sua postura também, de passiva
aceitação (ponto).
No final, fica de repente uma vontade enorme, que as frases não tivessem terminado, e, coisa estranha, já não estou tão enervada com Maria Adelaide, e muito menos com o Encenador! Parabéns!

sorrisos :)

mariam