quarta-feira, 16 de julho de 2008

Depois do Teatro, o Jogo – última Cena

Abriu. ELAS ali estavam, cobertas de glória. A AUTORA envolta num esplêndido vison castanho. A ACTRIZ com uma estola de arminho sobre os ombros, fazendo ressaltar o azeviche dos cabelos. Da penumbra do hall, sem cerimónia, o MECENAS entrou de rompante e gargalhou, numa reprimenda fingida:

- “Como não quiseste estar na minhaaaa Ceia - sublinhou – viemos nós celebrar contigo...”

Entraram. O MECENAS balanceava ainda o corpo na gargalhada e ocupava todo o espaço no jeito peculiar de seus movimentos felinos. ELAS, com um brilho especial nos olhos, prenunciador das grandes explosões luminosas que, uma e outra, guardavam na subtileza e graça de seus gestos.

- “Jogamos?!...” – perguntou a ACTRIZ, enlaçando-o, num murmúrio. Sentiu o calar doce de seus cabelos na face e o lume de seus olhos negros devassando os seus.

Pressentiu, então, uma peça cujo trama desconhecia. E a AUTORA, num sorriso de cumplicidade, entre irónica e decidida, acompanhando as palavras com um beijo:

- “Viemos aqui para jogar, sabias?!...”

Semi-contrariado, com o olhar, interrogou o MECENAS:

- “Não te vires para mim, estou tão inocente quanto tu...” – disse rindo, suspendendo, por momentos, o gesto de abrir o champanhe. -“Mas por mim, aceito!”... – sublinhou, acentuando a intensidade da gargalhada.

O ENCENADOR compreendeu intimamente que estava cercado. E, se pretendia dominar a cena, teria que tomar a iniciativa.

- “Seja!... Joguemos, pois! ... ” - anuiu. E, libertando-se do abraço feminino: -“Mas já que jogamos, façamos deste jogo uma obra de arte!...”

E, em passadas largas pela sala, frenético, em súbita iluminação, descreveu cenário e as regras do “espectáculo”. Jogariam, como se aquele jogo fosse o último acto de suas vidas. Nus e com máscaras, como se toda a vida passada se desfizesse em pó nos passos percorridos...

Portanto...

Ao centro, a mesa de jogo com pano verde cuidadosamente aberto. Apenas a luz nua da lâmpada solta reflexos doirados sobre os rostos, cobertos de máscaras barrocas. No canto da sala, um candelabro com sete velas acesas, que bruxuleavam sombras pelo espaço. O MECENAS, com uma máscara estilizada de Diónisos; o ENCENADOR, com a carranca de um velho Fauno.

ELAS, mais subtis, escondem o rosto em mascarilhas de seda. Azul uma, a autora, sob a qual espreitam os olhos de uma luminosidade intensa. Negro e branco a outra, a actriz, sugerindo, vagamente, o esboço de um Pierrô ...

- “Para quê jogar?” – insinua-se, num sorriso misterioso, Diónisos – “se todos conhecemos, antecipadamente, o resultado”. “Depois deste jogo” - esclarece - sobrará apenas o esboço ténue de nossas máscaras, flutuando no espaço...”

- “Jogaremos!...” – declara categórica a mascarilha azul ... – “todos nós somos jogadores e apreciamos o jogo pelo prazer de jogar...”

E, empolgando-se :

- “ Já que Deus não joga ao dados, enfeitemo-nos nós de deuses e joguemos!...”

E o velho Fauno, que outra coisa não quer que não seja o calor dos corpos na intimidade do jogo e a colheita sinuosa das almas em cada lance, declara, enfático:

- “Joguemos, pois! E saibamos guardar a memória do jogo, como o vinho guarda o perfume rescendente da vida...”

Toda a noite jogaram intensos e vibrantes. Subindo mais e mais cada parada. Como se cada lance, fosse o orgasmo primordial. Como se o universo se esgotasse na energia fálica dos dedos sobre a mesa...
................................................................................

Raiava o dia, naquele casarão decadente, nos arredores da grande urbe:

- “Ficamos por aqui!... “ - declara categórica a mascarilha azul – “O sol não tarda a nascer e eu quero estar em casa, antes das crianças irem para o Colégio...”

Ganhara. A mascarilha azul ganhara um bom pecúlio. Jogara inteligente e contida e ganhara, pois bem sabia que nunca se jogam emoções num primeiro jogo e, sobretudo, numa única jogada.

- “Saio contigo! ... – diz a mascarilha “pierrô”, alvoroçada com os preparativos de uma viagem em perspectiva. Como jogadora exímia, acumulara também emoções às emoções que trouxera...

Restaram, portanto, Diónisos, com seu riso sardónico e o velho Fauno, que, abatido por momentos, se levantou e tirou a máscara... Atravessou, depois, com elegância, o salão até ao candelabro, onde se finavam as velas. Acendeu, na chama trémula, uma cigarrilha negra, juntou o polegar com o indicador e, se qualquer sinal de dor, apagou, com os dedos, uma a uma todas as velas.

Voltou-se, pronto a interpelar o Mecenas. E disponível para, num úníco de lance, jogar o destino da sua louca paixão. Então, perplexo, deparou com a máscara tombada de Diónisos. E, em vez do MECENAS, em seu lugar, era o corpo e rosto duplicados do Encenador!...

Inesperadamente. Como num melodrama mal ensaiado, cumpria-se assim o destino paralelo, tantas vezes prenunciado... ...

Soou, então, uma voz cava, vinda de além do Tempo:

- “No delírio dos corpos, quiseste colher almas!... Espero que, ao menos, esta derrota te ajude a compreender a tua...”

No ar pairava intenso odor a enxofre. Como espectros, AUTORA e ACTRIZ acenavam no espaço, sem se saber bem se como chamamento ou se como despedida...

De um canto da sala, Mefisto, saído de uma qualquer página do “Fausto”, esguichou um gargalhada (ihihihih) e desapareceu envolto em fumo denso...

(E este pobre narrador, que não é um homem justo e que tem, por vezes, a pretensão de jogar aos dados com a vida, declara que ateia fogo, em praça pública, às palavras e cenas atrás (d)escritas, em expiação, não de seus pecados ou culpas, mas de seus exageros...)

9 comentários:

Maria Laura disse...

Caramba, que cheiro a enxofre deixaste por aqui! Olha, se eu acreditasse em deuses e demónios...
Há jogos que jogamos todos os dias, perversos jogos para os quais não precisamos da intervenção de forças sobrenaturais. Basta-nos a condição humana e acredito que é isso que o teu texto, por mais fantástico que pareça, reflecte.

Justine disse...

Um gato, preto ou de qualquer outra cor, faz sempre falta...

O teu texto, cheio de jogos de espelhos e de intertextualidades,é perturbante e sedutor!

Unknown disse...

E agora, encena_dor?
Como vai ser?
Depois da descoberta... a solidão!
Eras tu.
Como eras tu!...
.
[Beijo...]

~pi disse...

vozes pralém do tempo

mefistos

faustos

todos: no grau máximo

da sedução: teatro s !! :)



~

mdsol disse...

uma revelação. Pronto! Ponto!

jrd disse...

Dos Mecenas e outros demónios. Era de prever.
Abracos

Mar Arável disse...

Os mecenas são assim

mesmo fora do palco

Unknown disse...

Terei tido uma premonição?
Logo eu? Acho que não... :)
.
Mas, sonhei com arlequins... antes de do teu "esboço de Pierrot".
.
Usaria uma "mascarilha azul"... se isso me fizesse crer [porque não sou de acreditar em quase nada...], que seria a verdadeira e única "autora" dos meus dias: que não sou...
.
[Beijo de reconhecimento :)]

mariam [Maria Martins] disse...

olá!
Titeriteiro,

assim, de repente, muito de repente, apareceu no meu singelo blog...
pensei, pois então, comecemos pelo princípio... por ora, fico nesta cena, amanhã continuo.

Este teatro (sublime!), está a perturbar-me, um dia, Manuel, talvez lhe conte!

um sorriso :)

mariam