domingo, 17 de agosto de 2008

A Sãozinha volta a atacar...

Desta vez, a Sãozinha telefonou com quinze dias de antecedência. Deste lado da linha, ainda balbuciei : - “Mas Sãozinha, sei lá eu o que faço amanhã, quanto mais!”...

A Sãozinha cortou, célere:

-“Arranja-te! Tens-me aí no dia tantos de tal!” ...

A dar ordens a Sãozinha não admite réplica. Arranjei-me, portanto. E no dia aprazado, a Sãozinha aí estava extrovertida e ansiosa como nunca:

-“Tenho que te contar, esta não podes perder!..” – atirou-me, mal se dependurou, em beijinhos melosos, agarrada ao meu pescoço.

Estranhei. As grandes “revelações” costumavam vir depois, já quando ela extinguira o fogo e os corpos pedem confidências. Mas desta vez não. Exigiu que me sentasse...

- “Imagina tu, que o meu vestido de seda verde está todo estragado!” ...

Vocês, sabiam?!... Eu nem imaginava! Mas não tive tempo para protestar. Nessa altura, a Sãozinha já ia em velocidade de cruzeiro. E, de uma fiada, estendeu o drama completo do vestido de seda verde, “que lhe custara bom dinheiro”...

Afinal, o vestido da Sãozinha acarretou consequências políticas profundíssimas. Como sabemos, os grandes lances da história, definem-se em pequenos detalhes. Como o tamanho do nariz de Coleóptera, por exemplo.

Tentarei explicar este verdadeiro drama histórico que o vestido da Sãozinha provocara...

O "status quo" da cidade andava estrategicamente à procura do verdadeiro líder da oposição. Para quando, no País, a alternância chegasse, os interesses locais permanecerem os mesmos, como sempre. A escolha recaiu sobre um jovem professor do Politécnico, natural da cidade, com mestrado fresco, numa dessa múltiplas engenharias, que por aí proliferam...

Filho de taverneiro, porém, haveria que lhe limar modos e maneiras. Tarefa a que a Sãozinha se prestou com devoção e empenho...

E eis o drama: numa selecta recepção, com a Sãozinha a tiracolo, o novel iniciado, sustentáculo futuro dos pergaminhos da cidade e dos egrégios valores dos seus cidadãos, “tropeçou” no atavismo da sua condição de filho de taverneiro - num trago apenas emborcou o cálice de vinho fino, sacudindo para o lado as últimas gotas, como se um rural fosse na velha tasca, donde saíra...

Azar dos azares... Apanhou em cheio o vestido da Sãozinha!...

- “Aqui mesmo!” – diz ela, segurando-me o indicador e esfregando no mamilo esquerdo; - “uma nódoa enorme”- acrescenta, alargando o gesto à macieza de todo o seio...

-“Vê lá tu, aquele burgesso! E eu que depositava nele tantas esperanças...”, suspira inconsolável.

E, num doce revirar de olhos, no mais perfeito “rosa rosae” de seus lábios:

-“Ainda se eu tivesse lá, meu Príncipe!...” - suspiro que entendi como subtil convite a futuro líder da oposição local!...

-“Mas não tens, Sãozinha! E se tivesses, terias que me fazer bispo!...” – soltei eu numa gargalhada.

A Sãozinha, comigo, não se importa de perder. E, entrando, no meu jogo:

-“Báculo já tu tens, meu depravado!...” - rematou ela atirando-se ao fecho das minhas calças.

O dia estava quente. A minha amiga banqueteou-me com entrada de presunto e melão polvilhado de gelo moído, seguida de uma salada de bacalhau. Essa mesmo: a célebre salada de bacalhau...

Uma especialidade, Sãozinha dixit...

domingo, 3 de agosto de 2008

Desejo que venhas, Maria Adelaide...

Desejo que venhas, Maria Adelaide, partilhar a paleta indistinta de sentimentos, tão apta a desabrochar em fantasia de cor, como a fechar-se em teimosia de guardar as pétalas. Tantas vezes, dizendo-te, me digo. E aquilo que era apenas intuição, ou vago desejo de nada e de tudo, se revela límpido em ti. O teu rosto e o teu sorriso, talvez uma breve carícia de teus olhos e a palavra ganha a tonalidade certa e o sentido oculto, que os dedos decifram...

Quero que sejas a matriz de tudo. Que eu te invente de novo. Que te recrie na doce lembrança dos primeiros tempos, esbatidos – ambos o sabemos – no devir das nossas vidas passadas. Na contabilização de nossos afectos, que não sendo nossos, nossos são, na divergência e desencontros das nossas vidas. A que ambos somos leais, mas não fiéis...

Confessaste-me, um dia, que te aproximaste de mim por curiosidade. Em certo sentido, eu era um outsider. Nas minhas itinerâncias profissionais, acabara de retomar o lugar na Administração Pública. A geografia política mudara. Eram outros os tempos. O João, teu marido, ocupava lugar destacado no poder de momento. E tu vieras porque era ali mais confortável o teu trabalho. A ti bastava seres a mulher de quem eras. Eu era quase um “pária”.

O Director não me dava nada para fazer e eu não me importava. De forma que tu e eu tínhamos que queimar as horas e a monotonia. Devo confessar-te, porém, que me aproximei de ti pelo veludo de teus olhos. E em nome da velha amizade com teu marido. Sempre o João dissera, em conversas soltas da juventude, no grupo de férias na província, que um dia casaria, sim, mas com uma mulher rica. E a curiosidade agora era minha...

Quando te contei, mais tarde, sacudiste os cabelos numa gargalhada e vi os teus olhos toldarem-se. Ainda não éramos amantes. Depois eu soube. Tu contaste-me com lágrimas de amargura e raiva. Mas, então, ainda não sabia das dores de teu casamento... No entanto, ambos sabíamos, já de nossos corpos. Pressentíamo-nos na vibração, quando, a centímetros, escorríamos um pelo outro. Nas passagens, nas portas, no corredor. Quando, no elevador, repleto buscávamos a proximidade. Ou quando te sentavas, de pernas descuidadas, na minha secretária.

E quando, sobre a tela, passava o “Eclipse”, de Antonioni, a minha mão buscou a tua não houve surpresa. E quando a Mónica Vitti, tão frágil e desamparada, soltou o grito na brancura solar écran, as nossas bocas eram pasto. E quando saímos, a urgência do nosso amor era fome de ternura partilhada.

Merecemo-nos. Soubemos sorver até ao fim a beleza desse amor...

Hoje, porém, a Bárbara cresce dentro de mim, sem bem o saber. E digo-te como álibi... Quero que saibas tu primeiro...

E, então, o teu sorriso irónico: - “Que escrúpulos, Manuel... Então e a Flávia?!... E as outras?!... Deve ser coisa séria, essa Bárbara! Eu conheço-te...”

E soltas uma gargalhada nervosa. Oiço-te distraído. Os meus dedos desenham o indefinido rosto de Bárbara...