domingo, 23 de novembro de 2008

Os Figos da Sãozinha

Não sei por que artes ou manhas a Sãozinha soube da presença do Rapaz na cidade. A verdade, porém, é que acabara de se sentar numa esplanada, rodeado de jornais, quando telemóvel deu um sinal discreto.

- “Tens que vir ao meu “paraíso”! – solta a Sãozinha, sem aviso prévio.

O Rapaz ficou apavorado. Naquela manhã, apetecia-lhe antes ficar por ali, deambulando pelos locais e pela memória, sem outro compromisso que não fosse consigo próprio.

Mas quem resiste a um apelo da Sãozinha?... Por isso, antecipadamente vencido, gracejou:

-“Mas tu tens “paraíso”, Sãozinha?!... Que eu saiba, não te chamas Luísa, nem eu uso bigode”! – acrescentou o Rapaz divertido, numa vaga alusão queiroziana, ao celebre “Paraíso” do romance e ao celebrado “beijo” do primo Basílio.

-“E quem te disse a ti que és “primo”? – carregou ela, numa subtil passagem semântica de “primo” a “primeiro”...

E em gargalhada provocatória:

- “Aparece e não te armes em “esquisito”. Reservo-te bem melhor!...”.

Foi, claro!... A instituição de que a Sãozinha é administradora, directora executiva, consultora cultural e investigadora emérita está sediada na parte velha da cidade, numa colina sobranceira, cujo imóvel, acompanha as vicissitudes da história pátria. Convento franciscano na Idade Média, “casa da roda” com os constitucionalismo liberal, acolhimento de pobres e de órfãos na primeira República.

O Estado Novo acabou (como todos sabemos) com os pobres e os órfãos e instalou no edifício a Legião Portuguesa e o Arquivo Distrital. Foi, ainda, depois de 25 de Abril, sede de uma Associação Revolucionária e Popular, cujo projectos de Creche e Lar da 3ª Idade cedo estiolaram, no refluxo da euforia democrática.

Até que a Sãozinha lhe deitou mão. Como um furacão. Do histórico edifício resta o casco. Madeiras exóticas e mármores importados substituem agora os castanhos embutidos e as pedras seculares. Mas está certo. A Sãozinha merece o melhor e a Câmara é rica... Então não é mesmo uma glória aquelas portas automáticas abrindo-se em alas, à passagem da Sãozinha em majestade?!...

O Rapaz confessa-se deslumbrado, ora!...

A Sãozinha segurou-o pela mão, atravessaram em passo acelerado gabinetes, auditórios, salões, estúdios. Todos naturalmente desertos, está bom de ver... Mas não pensem que a Sãozinha não trabalha. Não!... Trabalha, pois!... A Sãosinha tem um adjunto. Um “burgesso” - como ela afirma – que essa manhã, expeditamente enviara a “despacho” com o Presidente da Câmara.

Portanto, integralmente sós, a Sãozinha e o Rapaz, no enorme casarão!...

Passadas as instalações da velha cozinha, finalmente, o “paraíso” da Sãosinha. No espaço ajardinado do que fora a antiga horta conventual, à sombra de um velho freixo, entre uma figueira e uma nogueira frondosas, a Sãosinha mandou instalar, presa no ramos as árvores, uma rede de baloiço, onde, como uma diva concupiscente, enquanto zela pela bem estar cultural da cidade, sonha com arroubos poéticos e fantasias inconfessáveis...

No centro do espaço, um mesa de pedra, com um vistoso cesto de figos. E o Rapaz numa vaga ironia:

- “Quem te segurou o escadote para colheres os figos?!...”, bem sabendo que altura roliça da Sãosinha não lhe permitiria alcançar os galhos da figueira.

- “ Mandei o “burgesso” colhê-los. Para tu os comeres, meu Príncipe!...” - disse, enquanto repenicava um beijo meloso...

O Rapaz tremeu e imaginou o “pior”. Sentou-se. Ao colo a Sãosinha. Sem cerimónia, puxou-lhe as mãos para as coxas, por debaixo da saia plissada, enquanto, por sua vez, esfolava, perdão, com seus delicados, dedos retirava a pele dos figos...

Com a boquinha “rosa rosae” debicava levemente e introduzia depois, um a um, partidos ao meio, os figos nos lábios do Rapaz, entre beijos frenéticos e gargalhadinhas de prazer. Cedo o Rapaz se apercebeu que debaixo da saia, a Sãosinha apenas trazia a sua pele tisnada e firme. (a Sãosinha não dispensa 15 dias de verão no sul de Espanha, com a família)!

Prestou-se ao jogo, por momentos, o Rapaz. Depois, já um pouco enjoado (os figos são indigestos), soltou-se da Sãosinha e perguntou meio sério, meio a rir:

-“Ó menina, tu queres empanturrar-me?!... Olha que depois eu não me mexo!...”

Então a Sãosinha, inesperadamente, dobrou-se sobre a mesa, levantou até à cintura a saia plissada, com os dedos abriu o abismo das suas carnes e, num suspiro de lúbrico, gemeu:

- “É teu. Dou-te. Come-o!...

Que pode um homem fazer em tamanha emergência?!... O Rapaz ergueu-se e... fez-lhe a vontade! Chamou-lhe um figo!...

Do meio da folhagem do freixo, um melro cantador, soltou um assobio trocista!...

Que alarve de pássaro!...

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Meu amigo Remédios anda em baixo de forma...

O meu amigo Quim Remédios anda em baixo. Os leitores/as mais atentos/as recordar-se-ão, certamente, do Remédios. Como tive oportunidade de contar noutra encarnação, a alcunha de “remédios”, colada como marca, ou destino, ao afável nome de baptismo do meu amigo, provem da circunstância de, nos tempos de estudante de medicina, ter receita pronta, sempre que amigos ou simples conhecidos, o assediavam, perante doença verdadeira ou imaginária.

-“Oh pá, f...! É remédio santo!...”- rematava o Quim, em todas as emergências, com uma valente palmada nas costas. Daí o “remédios”...

É verdade que, na matéria, o meu amigo não era nenhum teórico. Cultivava, antes, o gosto prático dos artesãos. Praticava a “receita” e respirava saúde, como então vos disse... Daí a densidade do actual drama do meu amigo, quase a assumir foros de tragédia...

Pois é verdade! Um dia destes encontrei-o em casa amigos comuns. Mal me viu entrar, do outro lado da sala, o Quim percorreu os metros que nos separavam, meteu o braço no meu e, enquanto nos afastávamos para um canto discreto, atirou-me:

-“Oh pá, tenho um grande problema! Um verdadeiro drama...” – esclareceu, ansioso.

Conheço bem a vocação teatral do meu amigo e a euforia dos seus gestos e atitudes. Sei, por isso, que os seus exageros acabam sempre por se reduzir a expressão mais simples, nos “dramas” com que, por vezes, pinta a vida (a sua vida!).

Estive, por isso, quase tentado a devolver-lhe a expressão que o tornou célebre : “oh pá, f...! é remédio santo!..” Ainda bem que o não fiz, pelas razões que irão ver. Porém, não pude deixar de saborear um certo gozo intimo, perante o sofrimento do meu amigo...

Limitei-me, pois, a lançar um olhar distraído, entre irónico e curioso e, como era de esperar, referi-lhe que os amigos são para as ocasiões: - “vê lá Quim se eu te posso ser útil nalguma coisa...” -, bem sabendo eu que a próspera actividade clínica do meu amigo, com uma clientela da moda, o afastariam, à partida, de quaisquer preocupações materiais, pelo que a minha disponibilidade não ultrapassaria o razoável plano “do apoio moral”.

Então o Quim puxou-me para ele e, com o seu braço atlético sobre os meus ombros, segredou-me que padecia de uma qualquer enfermidade, declinando um daqueles palavrões médicos, impronunciáveis para quem não seja iniciado...

Impávido, fixei-o, procurando discernir, na sua expressão, a gravidade da doença. Ante o meu silêncio, compreendendo, por certo, que eu ficara a zero, quanto à natureza dos seus males, o Quim puxou-me ainda mais e segredou uma expressão em latim, de cujo sentido apenas retive vagamente o significado de erectus.

E, antes que eu pudesse exortá-lo a falar português corrente, o Quim Remédios, do alto do seu metro e noventa, desancou-me:

- “Porra, estás cada vez mais burro! Estou a ficar impotente, disfunção eréctil, percebeste, pá?! “- quase gritou! E num tom mais suave : - “ultimamente, tenho-me ido a baixo e não encontro graça nenhuma, pá!...”

Confesso que a minha gargalhada brotou espontânea e sem qualquer intenção de apoucar o meu amigo. Contudo, não resisti a uma pequena farpa:

- “Mas Quim, o especialista na matéria és tu! Nisso não te posso valer!... Acontece aos melhores...” – declarei, procurando conter o riso e desembaraçando-me do abraço.

E, percebendo o Quim mais descontraído, pelo benéfico efeito da minha gargalhada, alarguei o olhar a sala e inquiri-o, apontando o corpo crepitoso da Zélia, uma morenaça espampanante, a rebentar de cio, no seu tailler rouge:

- “Não me digas que a maravilhosa “botija sentimental – é assim que amorosamente a designa -, que tiveste o muito bom gosto de eleger como último trofeu, não é capaz de fazer o milagre?!...”

E, sibilino, acrescentei num sorriso malévolo: - “ E que tal se lhe comprares lingerie a condizer?!...”

Então o Quim, descoroçoado:

- “Nada que não tivesse tentado, pá!..”- retorquiu – “mas imagina tu que uma noite destas, quando lhe mandei pôr umas cuequinhas de seda preta, a gaja teve o desplante de me dizer : “Para quê?!... Só se queres ver a minha passarinha de luto!..”

Vocês acham que o meu amigo Remédios, tem "remédio"?!... Francamente, começo a duvidar...

domingo, 12 de outubro de 2008

Em tarde de Outono...

Levantaram-se e saíram. Ele desejou que para dentro do automóvel. Mais uma vez ela trocou-lhe os desejos. Em lugar da intimidade do espaço fechado, onde as mãos poderiam circular e o diálogo da pele dar sequência ao diálogo ainda quente das palavras e dos olhares, ela optou pela extensão da areia deserta e o horizonte infinito da tarde do Outono...

Seguia-a. Deslaçou o nó da gravata e, com o casaco atirado sobre o ombro, seguiu-a. Sentiu-se um pouco ridículo de fato e gravata, a percorrer a praia, bem sabendo que algures, na cidade, a sua ausência seria comentada. Mas seguia-a ...

- “Que se lixem, não quero saber da reunião para nada!” – observou, entre dentes, detendo-se por momentos nos compromissos profissionais da tarde.

Tentou passar-lhe o braço pelos ombros, aconchegando-a, mas ela desfez a carícia. Soltou os cabelos em cascata, sacudiu a cabeça fulva e rebelde e prosseguiu, cadenciada. A maresia inundava as narinas dilatadas. O sol ainda quente, queimava os poros. Uns passos atrás ele segui-a. Sempre... Dominado o impulso. Serenando o sangue. Tecendo caprichos no bambolear das ancas dela...

Os passos deixavam marca da passagem de um homem e de uma mulher na solidão tarde, que caía!...

- “Gostava de te saber nua!..” disse, num murmúrio, saído do âmago do desejo, que ela tão bem adivinhava...

Voltou-se ela, num sorriso. E, sem nada o fazer prever, deixou cair das mãos as sandálias descalças, soltou as alças do vestido e a nudez soberba de seu corpo explodiu na serenidade plena da tarde...

(Um homem perplexo, uma mulher nua e a paisagem, apenas. Sem outra glória, nem crime. Apenas o crepitar do momento único...)

Correu, como corça acossada, desejando o fogo predador. Ele sorriu. Dobrou-se, alcançou as peças de roupa abandonada e segui-a. Passo a passo, antecipando o momento. Saboreando o prazer pagão de dádiva da vida ...

Metros adiante, ocultada por uma rocha milenar, com as ondas lambendo-lhe os pés, estendida no alcochoado da fina areia, ela ali estava expectante em sua nudez exposta...

- “Ofereço-te o livro do meu corpo. Saberás decifrar as suas letras?!... “ – exclamou, em convite sorridente.

( À distância, Eric Rommer filmava e sorria...)

terça-feira, 30 de setembro de 2008

A Invenção do Mar...

Teciam carícias como flores. Sobre a relva, os corpos ébrios de espaço. O rodopio. O céu e terra misturavam-se na vertigem. Depois exaustos, caiam e (en)rolavam-se. Em fusão de adolescência e primavera. Então ele tecia grinaldas de malmequeres e enfeitava seus cabelos. Em glorificação pagã de tempos futuros, pois agora nada sabia(m): era(m) inocente pulsão de vida. Ela ria. O marfim dos dentes, o vermelhão húmido dos lábios, os seios a despontar no estampado da blusa. Ele atrevia-se. Por vezes, ao joelho destapado. E a mão a subir à coxa, tremendo de novidade e emoção.

E a voz esquiva, no sorriso:

- “Está quieto. Aí, não!...”

E corriam, de pássaros nos olhos, levantando revoadas...

O sol criava reflexos de oiro nos olhos verdes de Joaninha. Queimavam. Ele abrasava no sangue revolto. Ofegante, crescia. E olhava-a, fervilhante:

- “Dá-me um beijo!...” – dizia em oração murmurada.

Perversa e risonha, apontava o rosto. Desiludido e amuado, teimava:

- “Tu prometeste. Dá-me um beijo!...”

Ergueu-se majestosa. Com a mão, em concha, a proteger os olhos, alargando o olhar para além do horizonte, sorriu, em arrepio de infinito:

- “Dou-te um beijo, se me disseres onde fica o mar...”

O adolescente inventou o mar naquela tarde ...

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Volto a ti...

Volto a ti, Maria Adelaide, como quem depois da caminhada e da poeira pretende a fonte. Sei que abres o regaço e que os teus dedos estão disponíveis para carícia. Porque venho? Sei que te interrogas. E eu que a ti regresso sempre como porto antigo que conhece o barco e os ventos e a brisa que aportam a ti...

Não, não é a Flavia!... A Flávia é agora apenas o limbo. O ponto neutro de que nada se espera. Apenas o vinho que se (de)gostou e de que se guarda a última garrafa. Que por certo nunca será aberta. Sabe-se lá se vai resistir ao tempo!...

Não. O que me traz a ti e este enamoramento de coisa nenhuma. Desse corpo inventado que me persegue. O rosto que os meus dedos desenham no vazio. Vejo o teu sorriso: -“meu pobre Manuel, continuas a acreditar nas tuas fantasia, como se elas fossem alimento. Sabes que gosto muito de ti e dos teus poemas, mas a vida é outra coisa.E devias saber que foste o sopro da minha regeneração como Mulher, mas não te iludas...”

Atalho o teu discurso. Não é um regresso que procuro. Apenas esta esvoaçante brisa que a tua presença encerra... Um sopro de coisa nenhuma que atravessa os meus dedos abertos, como areia em delírio de crianças...

E antes de falarmos do teu divórcio e do que se seguiu quero-te ainda assim frágil e disponível. Apenas o seio. As palavras que espero. Que sejam não o lenitivo, mas o entendimento desta emoção.

Sabes? Num assomo de ainda te reter, apetecia-me convidá-la. A ela, sim. Rever com ela os locais. Nossos. Sentir, com ela, por exemplo, o travo da noite quente de Alfama de que o Stº António foi pretexto. Lembras-te? O João, teu marido, nos seus múltiplos afazeres estiveram a semana fora.

E chamas-te, no teu capricho: “quero que esta noite seja nossa!”. E foi...

Subimos Alfama enlaçados. Misturamos o corpo e os sentidos na multidão. Senti o cio de teu corpo de encontro ao meu. Bebeste vinho pela minha mão. Sentiste pulsar do Povo reguila e fadista, semi alienado na sua vocação de povo alegre por devoção do santo protector. E os turistas basbaques, fingindo divertir-se...

Sorvi contigo os cheiros de África da tua meninice. Em teus olhos novas descobertas. Os meus, teus escravos...

E subimos colina acima. Mostrei-te o que sabia e na noite nos demos. Nas escadas em caracol até ao leito nos beijamos. E nos amamos com a Lua caprichosa apontando-nos o dedo...

Lá fora era a festa. Em nossos corpos o tempo escoava suave... Como fruto perfumado

domingo, 17 de agosto de 2008

A Sãozinha volta a atacar...

Desta vez, a Sãozinha telefonou com quinze dias de antecedência. Deste lado da linha, ainda balbuciei : - “Mas Sãozinha, sei lá eu o que faço amanhã, quanto mais!”...

A Sãozinha cortou, célere:

-“Arranja-te! Tens-me aí no dia tantos de tal!” ...

A dar ordens a Sãozinha não admite réplica. Arranjei-me, portanto. E no dia aprazado, a Sãozinha aí estava extrovertida e ansiosa como nunca:

-“Tenho que te contar, esta não podes perder!..” – atirou-me, mal se dependurou, em beijinhos melosos, agarrada ao meu pescoço.

Estranhei. As grandes “revelações” costumavam vir depois, já quando ela extinguira o fogo e os corpos pedem confidências. Mas desta vez não. Exigiu que me sentasse...

- “Imagina tu, que o meu vestido de seda verde está todo estragado!” ...

Vocês, sabiam?!... Eu nem imaginava! Mas não tive tempo para protestar. Nessa altura, a Sãozinha já ia em velocidade de cruzeiro. E, de uma fiada, estendeu o drama completo do vestido de seda verde, “que lhe custara bom dinheiro”...

Afinal, o vestido da Sãozinha acarretou consequências políticas profundíssimas. Como sabemos, os grandes lances da história, definem-se em pequenos detalhes. Como o tamanho do nariz de Coleóptera, por exemplo.

Tentarei explicar este verdadeiro drama histórico que o vestido da Sãozinha provocara...

O "status quo" da cidade andava estrategicamente à procura do verdadeiro líder da oposição. Para quando, no País, a alternância chegasse, os interesses locais permanecerem os mesmos, como sempre. A escolha recaiu sobre um jovem professor do Politécnico, natural da cidade, com mestrado fresco, numa dessa múltiplas engenharias, que por aí proliferam...

Filho de taverneiro, porém, haveria que lhe limar modos e maneiras. Tarefa a que a Sãozinha se prestou com devoção e empenho...

E eis o drama: numa selecta recepção, com a Sãozinha a tiracolo, o novel iniciado, sustentáculo futuro dos pergaminhos da cidade e dos egrégios valores dos seus cidadãos, “tropeçou” no atavismo da sua condição de filho de taverneiro - num trago apenas emborcou o cálice de vinho fino, sacudindo para o lado as últimas gotas, como se um rural fosse na velha tasca, donde saíra...

Azar dos azares... Apanhou em cheio o vestido da Sãozinha!...

- “Aqui mesmo!” – diz ela, segurando-me o indicador e esfregando no mamilo esquerdo; - “uma nódoa enorme”- acrescenta, alargando o gesto à macieza de todo o seio...

-“Vê lá tu, aquele burgesso! E eu que depositava nele tantas esperanças...”, suspira inconsolável.

E, num doce revirar de olhos, no mais perfeito “rosa rosae” de seus lábios:

-“Ainda se eu tivesse lá, meu Príncipe!...” - suspiro que entendi como subtil convite a futuro líder da oposição local!...

-“Mas não tens, Sãozinha! E se tivesses, terias que me fazer bispo!...” – soltei eu numa gargalhada.

A Sãozinha, comigo, não se importa de perder. E, entrando, no meu jogo:

-“Báculo já tu tens, meu depravado!...” - rematou ela atirando-se ao fecho das minhas calças.

O dia estava quente. A minha amiga banqueteou-me com entrada de presunto e melão polvilhado de gelo moído, seguida de uma salada de bacalhau. Essa mesmo: a célebre salada de bacalhau...

Uma especialidade, Sãozinha dixit...

domingo, 3 de agosto de 2008

Desejo que venhas, Maria Adelaide...

Desejo que venhas, Maria Adelaide, partilhar a paleta indistinta de sentimentos, tão apta a desabrochar em fantasia de cor, como a fechar-se em teimosia de guardar as pétalas. Tantas vezes, dizendo-te, me digo. E aquilo que era apenas intuição, ou vago desejo de nada e de tudo, se revela límpido em ti. O teu rosto e o teu sorriso, talvez uma breve carícia de teus olhos e a palavra ganha a tonalidade certa e o sentido oculto, que os dedos decifram...

Quero que sejas a matriz de tudo. Que eu te invente de novo. Que te recrie na doce lembrança dos primeiros tempos, esbatidos – ambos o sabemos – no devir das nossas vidas passadas. Na contabilização de nossos afectos, que não sendo nossos, nossos são, na divergência e desencontros das nossas vidas. A que ambos somos leais, mas não fiéis...

Confessaste-me, um dia, que te aproximaste de mim por curiosidade. Em certo sentido, eu era um outsider. Nas minhas itinerâncias profissionais, acabara de retomar o lugar na Administração Pública. A geografia política mudara. Eram outros os tempos. O João, teu marido, ocupava lugar destacado no poder de momento. E tu vieras porque era ali mais confortável o teu trabalho. A ti bastava seres a mulher de quem eras. Eu era quase um “pária”.

O Director não me dava nada para fazer e eu não me importava. De forma que tu e eu tínhamos que queimar as horas e a monotonia. Devo confessar-te, porém, que me aproximei de ti pelo veludo de teus olhos. E em nome da velha amizade com teu marido. Sempre o João dissera, em conversas soltas da juventude, no grupo de férias na província, que um dia casaria, sim, mas com uma mulher rica. E a curiosidade agora era minha...

Quando te contei, mais tarde, sacudiste os cabelos numa gargalhada e vi os teus olhos toldarem-se. Ainda não éramos amantes. Depois eu soube. Tu contaste-me com lágrimas de amargura e raiva. Mas, então, ainda não sabia das dores de teu casamento... No entanto, ambos sabíamos, já de nossos corpos. Pressentíamo-nos na vibração, quando, a centímetros, escorríamos um pelo outro. Nas passagens, nas portas, no corredor. Quando, no elevador, repleto buscávamos a proximidade. Ou quando te sentavas, de pernas descuidadas, na minha secretária.

E quando, sobre a tela, passava o “Eclipse”, de Antonioni, a minha mão buscou a tua não houve surpresa. E quando a Mónica Vitti, tão frágil e desamparada, soltou o grito na brancura solar écran, as nossas bocas eram pasto. E quando saímos, a urgência do nosso amor era fome de ternura partilhada.

Merecemo-nos. Soubemos sorver até ao fim a beleza desse amor...

Hoje, porém, a Bárbara cresce dentro de mim, sem bem o saber. E digo-te como álibi... Quero que saibas tu primeiro...

E, então, o teu sorriso irónico: - “Que escrúpulos, Manuel... Então e a Flávia?!... E as outras?!... Deve ser coisa séria, essa Bárbara! Eu conheço-te...”

E soltas uma gargalhada nervosa. Oiço-te distraído. Os meus dedos desenham o indefinido rosto de Bárbara...

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Velo teu sono...

Velo teu sono da agitação do dia (que o beijo colhe)
Perdido naquele gesto de ti em rebeldia
De tudo guardar até à lágrima...

Tomo-te nos dedos flor dispersa depois do vento
Assim ferida em meu peito o sangue de tuas vestes
Agora nua. Apenas o murmúrio me importa...

Subtil que seja tua vinda...

Deixo a brisa de teus ais entrar na minha pele
Dorida que venhas no catre em que me deito
Flor de meu desejo. Que o corpo arde...

Anjo caído...

Perfume teu assim negado em desespero
Fértil na espera. Maduro de mil verões de tempo novo
Que os sentidos gritam...

Lagos e sonhos de teus olhos...

sábado, 26 de julho de 2008

Eleições que foram...

Não te esqueças de votar no Domingo...” – soltas, inesperada, do outro lado do telefone, na tua voz aveludada, entre o sobressalto da emoção e o riso irónico...

- “Ah, és tu, Maria Adelaide. Não esquecerei. Celebraremos, de novo, juntos “a minha derrota?!”... – sorrio, com mal disfarçada ternura, bem sabendo o que ditava a tua preocupação cívica.

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Era, assim, noutros tempos. Antes de, em lucidez determinada, teres, Maria Adelaide, colocado ponto final na nossa relação sentimental. Marido e amante eram as duas faces da mesma moeda. Por isso, a tua emancipação pressupunha a “morte” dos dois.

Mas antes, quando tu saltavas de margem para margem, quando o João, teu marido, se afadigava em ambições políticas e, eu próprio, em campo oposto, me expunha na luta política, balançavas tu entre o dever de esposa e o voto do coração. E, prodigiosa, inventaste, então, a fórmula exacta: “celebrar a minha derrota”. O meu campo, ainda que ganhasse, nunca ganharia. A minha vitória seria, pois, a celebração contigo. E o João, teu marido, ganharia, claro, perdendo-(te) um pouco mais...

E celebrávamos, então. Abrias o champanhe, acolhias-me, fremente, no apartamento da praia, em ritual de transgressão. Palpitava o desejo no brilho do olhar, no teu riso nervoso e, como gazela ferida, expunhas o gozo de beber comigo o champanhe de teu marido. Impúdica e excessiva, sempre. Como se a entrega do corpo fosse catarse da alma. Em ultraje às convenções...


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Acordei, com a tua gargalhada:

- “Não! O champanhe esgotou, bem sabes: - dizes, carregando o subentendido. - “E o Pedro navega nas tuas águas. A tua derrota é também a sua derrota”, - acrescentas, num vago sorriso.

Vi sinceridade na tua voz. Terias acertado, finalmente?!.... Depois do teu divórcio, uma ou duas experiências de que saíste magoada. E isso doía-me.

Tremo por ti Maria Adelaide!... Oxalá.

- “Então o Pedro só pode ser bom rapaz!...”- gracejei.

Surpreendendo-me com a minha sinceridade:

- “Sou feliz com a tua felicidade, bem sabes!” – e, em íntimo temor: - “E este te telefonema, Maria Adelaide? Será que não “precisas” de falar comigo?!...”

Que não. Que está tudo bem. Que gostas de dar aulas e que o Pedro é carinhoso. E o teu filho gosta dele. São dois compinchas...

Senti a tua voz embargada:

- “Um dia destes falamos...” - disseste, bem sabendo tu e eu que “um dia destes” não tem prazo, nem horizonte...

- “Claro, Maria Adelaide, claro que falaremos. Sempre!... Até lá, procuremos comemorar as nossas derrotas”... – acrescentei, em amarga ironia...

Ficamos, assim, em silêncio. Minutos, de séculos. Depois, ambos recompostos, falamos de tudo e de nada. Dos amigos comuns. Das velhas e novas amizades. Do quotidiano. Inquiriste. Disse o que podia...

Do outro lado, o veludo da tua voz. Excitada. Quente. Acolhedora:

- “Tenho que ir! Cuida-te...” - e, num assomo de provocação, que tanto cultivavas: - “Fica sabendo que, desta vez, vou votar no “teu” partido! O Pedro merece...” .

Despedes-te numa gargalhada...

Que posso dizer-te, Maria Adelaide?!... Que és sempre bem vinda...

segunda-feira, 21 de julho de 2008

A Sãozinha no Te Deum...

A Sãozinha, velha amiga do Liceu, que os meus leitores ainda não conhecem, esteve recentemente em Lisboa. Confesso que ando a evitar a Sãozinha!... Não que esteja cansado, que ideia!... A Sãozinha supera todos os tédios. Mas que querem? um homem tem por vezes destas quebras!... Por isso, apenas à terceira, a Sãozinha me convenceu : -

- "Tens que vir, esta não a podes perder!"! - referia-se a Sãozinha, naturalmente, a uma das cenas picarescas, tão pródigas na provinciana cidade, onde a minha amiga exerce, com mestria, seu mister de zeladora da harmonia social, no culto das virtudes domésticas e no exemplo fecundo dedicação à causa pública e aos valores perenes da tradição e do respeito...

A Sãozinha sabe que não resisto à graça da sua boquinha "rosa, rosae",declinando, na cama, quadros vivos da nossa cidade natal... em fraldas!.. Por isso, à terceira, fui!..

Claro que antes da estória paguei o tributo. A Sãozinha estava famélica. E foi logo ali, mal transposta a porta, que o ataque se iniciou, fulminante. Uma autêntica incursão no Iraque: não ficou sobre mim pedra sobre pedra. O que vale é que Sãozinha é expert e aplicada. Não tive que me mexer - fui apenas pasto das suas chamas!...

Como sempre, apaziguada a fome da carne, a Sãozinha quis mimar-me. A tarde estava quente e, por isso, ficamo-nos por meloa perfumada com umas gotas de Porto, como a Sãozinha fez questão. Veio então a estória...

Por umas cartas que a Providência quisera, em boa hora, depor em suas sábias mãos, a Sãozinha descobrira que um vulto da 1ª República, nosso conterrâneo, objecto de seus estudos, fora não um ateu e herege carbonário, como todos julgavam, mas um devoto filho da santa madre igreja...

Imaginem o júbilo daquelas almas cristãs!... Impunha-se, como se compreende, celebração condigna. A reposição da verdade histórica assim o exigia. Um solene Te Deum, com o bispo e todo o cabido foi cantado... Para glória nos céus, consolo das almas pecadoras e esperança de conversação dos "novos" ateus!...

Dispenso-me entrar na descrição minuciosa da cerimónia, que a Sãozinha, solícita, quis que este ateu empedernido vivesse em todo o seu colorido e esplendor... Digo-vos apenas, à laia de remate, que o Presidente da Câmara chegou tarde à cerimónia. E, afogueado, por entre o sobreolho franzido do bispo e o pigarro mal contido do Governador Civil, se sentou no lugar reservado na Sé, junto à Sãozinha.

Então, por duas vezes o Presidente, na solenidade da cerimónia, bichanou ao ouvido da Sãozinha qualquer coisa. Que ela, na sua impecável compostura, insistia em não perceber!...

Finalmente compreendeu:- "o cheque! tem o cheque?!", inquiria, angustiado, o Presidente, referindo-se, naturalmente, ao pagamento da cerimónia, uma iniciativa conjunta da Câmara e da instituição!...

Não me disse, de sua resposta, a Sãozinha!... Apenas comentou, num suspiro angelical:

- "Imagina tu, o burgesso, na devoção do Te Deum, a falar-me em cheques!... Como se eu não tivesse mais nada para me ralar - como, por exemplo, a tua ausência e a falta de um madrigal teu, meu Príncipe!..."

Não é mesmo um amor a Sãozinha?!...

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Depois do Teatro, o Jogo – última Cena

Abriu. ELAS ali estavam, cobertas de glória. A AUTORA envolta num esplêndido vison castanho. A ACTRIZ com uma estola de arminho sobre os ombros, fazendo ressaltar o azeviche dos cabelos. Da penumbra do hall, sem cerimónia, o MECENAS entrou de rompante e gargalhou, numa reprimenda fingida:

- “Como não quiseste estar na minhaaaa Ceia - sublinhou – viemos nós celebrar contigo...”

Entraram. O MECENAS balanceava ainda o corpo na gargalhada e ocupava todo o espaço no jeito peculiar de seus movimentos felinos. ELAS, com um brilho especial nos olhos, prenunciador das grandes explosões luminosas que, uma e outra, guardavam na subtileza e graça de seus gestos.

- “Jogamos?!...” – perguntou a ACTRIZ, enlaçando-o, num murmúrio. Sentiu o calar doce de seus cabelos na face e o lume de seus olhos negros devassando os seus.

Pressentiu, então, uma peça cujo trama desconhecia. E a AUTORA, num sorriso de cumplicidade, entre irónica e decidida, acompanhando as palavras com um beijo:

- “Viemos aqui para jogar, sabias?!...”

Semi-contrariado, com o olhar, interrogou o MECENAS:

- “Não te vires para mim, estou tão inocente quanto tu...” – disse rindo, suspendendo, por momentos, o gesto de abrir o champanhe. -“Mas por mim, aceito!”... – sublinhou, acentuando a intensidade da gargalhada.

O ENCENADOR compreendeu intimamente que estava cercado. E, se pretendia dominar a cena, teria que tomar a iniciativa.

- “Seja!... Joguemos, pois! ... ” - anuiu. E, libertando-se do abraço feminino: -“Mas já que jogamos, façamos deste jogo uma obra de arte!...”

E, em passadas largas pela sala, frenético, em súbita iluminação, descreveu cenário e as regras do “espectáculo”. Jogariam, como se aquele jogo fosse o último acto de suas vidas. Nus e com máscaras, como se toda a vida passada se desfizesse em pó nos passos percorridos...

Portanto...

Ao centro, a mesa de jogo com pano verde cuidadosamente aberto. Apenas a luz nua da lâmpada solta reflexos doirados sobre os rostos, cobertos de máscaras barrocas. No canto da sala, um candelabro com sete velas acesas, que bruxuleavam sombras pelo espaço. O MECENAS, com uma máscara estilizada de Diónisos; o ENCENADOR, com a carranca de um velho Fauno.

ELAS, mais subtis, escondem o rosto em mascarilhas de seda. Azul uma, a autora, sob a qual espreitam os olhos de uma luminosidade intensa. Negro e branco a outra, a actriz, sugerindo, vagamente, o esboço de um Pierrô ...

- “Para quê jogar?” – insinua-se, num sorriso misterioso, Diónisos – “se todos conhecemos, antecipadamente, o resultado”. “Depois deste jogo” - esclarece - sobrará apenas o esboço ténue de nossas máscaras, flutuando no espaço...”

- “Jogaremos!...” – declara categórica a mascarilha azul ... – “todos nós somos jogadores e apreciamos o jogo pelo prazer de jogar...”

E, empolgando-se :

- “ Já que Deus não joga ao dados, enfeitemo-nos nós de deuses e joguemos!...”

E o velho Fauno, que outra coisa não quer que não seja o calor dos corpos na intimidade do jogo e a colheita sinuosa das almas em cada lance, declara, enfático:

- “Joguemos, pois! E saibamos guardar a memória do jogo, como o vinho guarda o perfume rescendente da vida...”

Toda a noite jogaram intensos e vibrantes. Subindo mais e mais cada parada. Como se cada lance, fosse o orgasmo primordial. Como se o universo se esgotasse na energia fálica dos dedos sobre a mesa...
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Raiava o dia, naquele casarão decadente, nos arredores da grande urbe:

- “Ficamos por aqui!... “ - declara categórica a mascarilha azul – “O sol não tarda a nascer e eu quero estar em casa, antes das crianças irem para o Colégio...”

Ganhara. A mascarilha azul ganhara um bom pecúlio. Jogara inteligente e contida e ganhara, pois bem sabia que nunca se jogam emoções num primeiro jogo e, sobretudo, numa única jogada.

- “Saio contigo! ... – diz a mascarilha “pierrô”, alvoroçada com os preparativos de uma viagem em perspectiva. Como jogadora exímia, acumulara também emoções às emoções que trouxera...

Restaram, portanto, Diónisos, com seu riso sardónico e o velho Fauno, que, abatido por momentos, se levantou e tirou a máscara... Atravessou, depois, com elegância, o salão até ao candelabro, onde se finavam as velas. Acendeu, na chama trémula, uma cigarrilha negra, juntou o polegar com o indicador e, se qualquer sinal de dor, apagou, com os dedos, uma a uma todas as velas.

Voltou-se, pronto a interpelar o Mecenas. E disponível para, num úníco de lance, jogar o destino da sua louca paixão. Então, perplexo, deparou com a máscara tombada de Diónisos. E, em vez do MECENAS, em seu lugar, era o corpo e rosto duplicados do Encenador!...

Inesperadamente. Como num melodrama mal ensaiado, cumpria-se assim o destino paralelo, tantas vezes prenunciado... ...

Soou, então, uma voz cava, vinda de além do Tempo:

- “No delírio dos corpos, quiseste colher almas!... Espero que, ao menos, esta derrota te ajude a compreender a tua...”

No ar pairava intenso odor a enxofre. Como espectros, AUTORA e ACTRIZ acenavam no espaço, sem se saber bem se como chamamento ou se como despedida...

De um canto da sala, Mefisto, saído de uma qualquer página do “Fausto”, esguichou um gargalhada (ihihihih) e desapareceu envolto em fumo denso...

(E este pobre narrador, que não é um homem justo e que tem, por vezes, a pretensão de jogar aos dados com a vida, declara que ateia fogo, em praça pública, às palavras e cenas atrás (d)escritas, em expiação, não de seus pecados ou culpas, mas de seus exageros...)

domingo, 13 de julho de 2008

Depois do Teatro, a Ceia – Cena II

Possuído pela inebriante paixão, como se fora um veneno doce, que tolhe a consciência e afasta quaisquer outros sentimentos que não sejam o deleite de mergulhar nas suas ondas, o ENCENADOR, frente ao espelho, maquinalmente, ajustou o smoking.

Olhou-se nos olhos e acendeu nos lábios o leve sorriso de ironia, que a si próprio dedica em ocasiões como aquela, em que sabendo-se embora senhor de si, não pode, contudo, deter os fios da corrente do destino e, por isso, o “sim” ou o “não” se jogam numa centelha de intuição, mais que num exercício deliberado de inteligência.

Não, não iria à faustosa ceia, que o MECENAS, no seu palacete recentemente restaurado, decidira organizar para seu gozo pessoal e em homenagem a toda a companhia. Claro que tinha boas razões para ir. ELAS lá estariam, requestadas, soberbas de charme e inteligência, dominadoras nesse palco sofisticado de mundaneidades e prazeres fugazes. Mas não iria...

Não lhe agradava, especialmente nessa noite de consagração, sentir-se refém do seu talento, escutar cumprimentos, brandir sorrisos, responder às perguntas imbecis dos jornalistas culturais, que certamente estariam em peso. Mas, sobretudo, preferia evitar o espectáculo do sorriso predador do MECENAS, cobrindo de elogios e atenções aquelas duas mulheres, alfa e ómega de seus êxtases. Se havia algum sucesso a comemorar deveriam ser apenas os três: qualquer intromissão seria perturbar o sopro divino do equilíbrio perfeito...

Não iria, pois!... Com um gesto brusco desfez o laço e libertou-se do smoking a caminho do seu recanto predilecto na biblioteca. O sangue, porém, continuava a latejar de inquietação. Bem sabia ele que o MECENAS as desejava tanto quanto ele próprio...

Sempre assim fora, nessa estranha relação entre os dois. Era amigos desde sempre. Oriundos de uma certa aristocracia arruinada da província, percorreram quase meio século de vida, adivinhando-se nos caminhos, nem sempre dóceis, trilhados por um e por outro. Fora assim no liceu, na faculdade, mais tarde em Paris, partilhando estudos, gostos, aventuras e mulheres, como se vida de cada um fosse réplica da vida do outro.

Melhor: como se, por um qualquer acidente do destino, a vida de cada um realizasse neles o mesmo percurso matricial!... Apenas o rosto e a profissão os distinguia. E, evidentemente, a ostentação da riqueza material. O sucesso empresarial fizera do MECENAS um homem prodigiosamente rico.

Buscava, em vão, o ENCENADOR, envolvido no turbilhão destes pensamentos, refrigério para o estado febril e para aguilhão do desejo, em sua imaginação exacerbada, que teimava em queimar-lhe a carne. Afastou, porém, as gotas de suor frio que, como orvalho matinal sobre pétalas, lhe ornavam a fronte e retirou, da estante, o LIVRO. Sempre o mesmo quando, como agora, a alma delirava e o corpo requeria o calor de outro corpo. Abriu, ao acaso, as páginas do “Fausto”, de Goethe e soletrou, intimamente, o seguinte diálogo:

Fausto:
-“Batem? Entre. Alguém me vem amofinar”.
Mefisto:
-“Sou eu!...”
Fausto (enfadado):
- “Entra lá!...”
Mefisto:
- "Ora assim é que é falar;acho que vamos dar-nos bem...”

Não teve mais tempo. A porta da entrada ribombava de impaciência...
(continua)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

O encenador apresenta-se....

Depois da estreia – Cena I

Caído o pano e apagadas as luzes, distendeu os músculos e ergueu-se da poltrona, onde gradualmente deixara as emoções da estreia, enquanto os ecos, aplausos e “encores” se esfumavam, em ondas cada vez mais distantes, nas suas células nervosas.

Valera a pena. Não seriam necessárias as críticas nos jornais do dia seguinte para ter a certeza que o espectáculo fora um sucesso. Sabia, porém, que nas emoções do momento, naquela cartografia de sentimentos díspares, na osmose de sensibilidades em que durante meses se envolvera, secundária fora sua pessoa e pouco contara o seu tão proclamado talento: o apuramento de uma deixa, aqui ou ali, um acerto de luzes, um pormenor de guarda roupa, uma leve correcção de marcação ou no registo de vozes, por vezes indispensáveis.

Porém, o teatro eram ELAS, essas duas mulheres sublimes, que por amor a elas, entrara naquele projecto, onde discretamente soubera imprimir a sua marca estética...

A Actriz, vibrátil e intensa, transfigura-se no palco; e no nervo e no sangue de seu corpo, frágil e sensível, todas as culpas se redimem e todas as glórias, prazeres ou depravações mundanas, alcançam a beleza sublime do “Cântico dos Cânticos”...

A Autora colocara, no coração da escrita, a alegria fecunda da sua criatividade participativa, exposta e vulnerável, tantas vezes graciosa, onde flutuaram, num jogo infinito de espelhos, heróis e vilões, sentimento calmos e funestas paixões...

Como não amar aquelas duas Mulheres?! Por amor a elas, comete pequenas/grandes traições, como aquela de na encenação da peça alterar o “final feliz” e deixar a heroína banhada em lágrimas, coberto o corpo nu com um lençol, como se tálamo nupcial fora, ao arrepio do que o público (e autora) esperariam. Mas a verdade é que não admitiria outro final, pois não suportaria vê-la assim exposta nos braços de outro homem...

Ama as duas, com paixão e ternura. Receia um dia deixar fluir a sua loucura mansa e, com o pano caído sobre o palco, com elas ensaiar a peça única das suas vidas. Sem outro guião que não seja a expressão livre do Desejo e sem outros aplausos que não sejam a cumplicidade à solta.(...)

(continua)