domingo, 3 de agosto de 2008

Desejo que venhas, Maria Adelaide...

Desejo que venhas, Maria Adelaide, partilhar a paleta indistinta de sentimentos, tão apta a desabrochar em fantasia de cor, como a fechar-se em teimosia de guardar as pétalas. Tantas vezes, dizendo-te, me digo. E aquilo que era apenas intuição, ou vago desejo de nada e de tudo, se revela límpido em ti. O teu rosto e o teu sorriso, talvez uma breve carícia de teus olhos e a palavra ganha a tonalidade certa e o sentido oculto, que os dedos decifram...

Quero que sejas a matriz de tudo. Que eu te invente de novo. Que te recrie na doce lembrança dos primeiros tempos, esbatidos – ambos o sabemos – no devir das nossas vidas passadas. Na contabilização de nossos afectos, que não sendo nossos, nossos são, na divergência e desencontros das nossas vidas. A que ambos somos leais, mas não fiéis...

Confessaste-me, um dia, que te aproximaste de mim por curiosidade. Em certo sentido, eu era um outsider. Nas minhas itinerâncias profissionais, acabara de retomar o lugar na Administração Pública. A geografia política mudara. Eram outros os tempos. O João, teu marido, ocupava lugar destacado no poder de momento. E tu vieras porque era ali mais confortável o teu trabalho. A ti bastava seres a mulher de quem eras. Eu era quase um “pária”.

O Director não me dava nada para fazer e eu não me importava. De forma que tu e eu tínhamos que queimar as horas e a monotonia. Devo confessar-te, porém, que me aproximei de ti pelo veludo de teus olhos. E em nome da velha amizade com teu marido. Sempre o João dissera, em conversas soltas da juventude, no grupo de férias na província, que um dia casaria, sim, mas com uma mulher rica. E a curiosidade agora era minha...

Quando te contei, mais tarde, sacudiste os cabelos numa gargalhada e vi os teus olhos toldarem-se. Ainda não éramos amantes. Depois eu soube. Tu contaste-me com lágrimas de amargura e raiva. Mas, então, ainda não sabia das dores de teu casamento... No entanto, ambos sabíamos, já de nossos corpos. Pressentíamo-nos na vibração, quando, a centímetros, escorríamos um pelo outro. Nas passagens, nas portas, no corredor. Quando, no elevador, repleto buscávamos a proximidade. Ou quando te sentavas, de pernas descuidadas, na minha secretária.

E quando, sobre a tela, passava o “Eclipse”, de Antonioni, a minha mão buscou a tua não houve surpresa. E quando a Mónica Vitti, tão frágil e desamparada, soltou o grito na brancura solar écran, as nossas bocas eram pasto. E quando saímos, a urgência do nosso amor era fome de ternura partilhada.

Merecemo-nos. Soubemos sorver até ao fim a beleza desse amor...

Hoje, porém, a Bárbara cresce dentro de mim, sem bem o saber. E digo-te como álibi... Quero que saibas tu primeiro...

E, então, o teu sorriso irónico: - “Que escrúpulos, Manuel... Então e a Flávia?!... E as outras?!... Deve ser coisa séria, essa Bárbara! Eu conheço-te...”

E soltas uma gargalhada nervosa. Oiço-te distraído. Os meus dedos desenham o indefinido rosto de Bárbara...

10 comentários:

dona tela disse...

Apresento-lhe a minha nova faceta.

Abraço respeitoso.

Unknown disse...

É...
de repente...
de mansinho...
aparece uma Bárbara, assim
sem se saber como
a desenhar um rosto
que não é só um alibi
mesmo que seja
num traçado indefinido
mas... parecendo quase
definitivo
quanto o nosso...
.
E adeus adelaides...
e adeus deleites passados
... e adeus...
.
[Beijo...]

manhã disse...

A Adelaide era boa e a Bárbara era melhor ou ainda como precisamos de alguém que seja só nosso. bons augúrios!

dona tela disse...

O Verão tem destas coisas...

Mel de Carvalho disse...

Um texto belíssimo. De sentimentos fortes, verbalizados sem falsos pudores, sem moralismos de faz de conta. Um prosa poética de tonalidades, matizes e gradientes rubros e de néon(s) e luzes de ribalta (e de bastidores)...

Porque somos quem somos e o amor é sempre dádiva, lhe digo: que cresçam e floresçam Bárbaras na vida dos homens e na intemporalidade dos dedos indefinidos. Sejam felizes, pois então :)

Melhores cumprimentos

Anónimo Silva disse...

Um texto bem escrito. Que mostra como facilmente as Bárbaras se transformam em Flávias e em Marias Adelaides. Depois de Maria Adelaide, a vaga lembrança. Assim é a realidade dos afectos. Muito bom.

~pi disse...

belo: pura poesia


( pois e agora?


~

Eme disse...

tinha mesmo de ser noutra ilha
é sãozinhas, é adelaides, é flávias e bárbaras, meuxddeuxes... faz me lembrar a china..

de notar que li dois posts seguidos

take seguinte!

Leonor disse...

ah! finalmente a adelaide.
e depois a saozinha.
bons textos. dialogos ridos, quando os há.
mas... a proposito de saozinha, de vez em quando o teclado atraiçoa-nos e penso que cleopatra nao está bem bem..vá la ver.
beijinhos

mariam [Maria Martins] disse...

Titeriteiro,
cá estou de novo,
vc é terrível!
afinal todas as mulheres terão um pouco de MariaAdelaide, de Sãozinha, de Autora e de Flávia e de Bárbara, Conceição...e de...Maria...
e afinal todos os Homens também terão um pouco de encenador, de Mecenas,de Vitor, António, Carlos, de Paulo...e de...Manuel...

ou ainda
"Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro."
(Mário de Sá Carneiro)

bom fim-de-semana
e melhor semana
deixo-lhe um punhado de castanhas assadas
e um grande sorriso (aflito) :)

mariam